Os olhos eram negros e diziam muito. Muito mais que os lábios do menino. Era o 11º de 14 irmãos. A mãe carregava no ventre mais dois rebentos. Moravam no sertão nordestino, vizinhos da seca, filhos da miséria. Os olhos falavam da fome ao mesmo tempo em que apresentavam a curiosidade do menino.
A rotina da família às vezes era quebrada pela visita do padre. O jesuíta levava palavras bonitas que de alguma forma confortavam a mãe, orientavam o pai e enchiam de histórias os olhos do menino.
Um dia o menino dos olhos bateu à porta do padre. Levava nas mãos um presente: um preá caçado por ele. Os irmãos conseguiram mais um, que seria a janta da família e aquele, o mais graúdo, era para o padre. Era a forma de dizer que gostava da sua presença. O padre sabia disso e sabia da importância do gesto. Havia visto tudo nos olhos do menino.
Mas os olhos do padre viram o preá. Ele argumentou que não podia aceitar o presente, pois eram muitos para comer na casa do menino. Argumentou, disfarçou, mudou de assunto. Os olhos do menino estavam fixos. O padre entrou em casa, se voltou para os afazeres. Quando voltou à porta, os olhos estavam baixos e, mais embaixo, o preá.
- Eu só volto para casa quando o senhor aceitar o meu presente.
A sabedoria do padre, que fazia com que as palavras tocassem as pessoas, vinha de uma história de vida que começara no amor da família, também do sertão, e passara por muitos livros, por estudo no exterior, por debates com outros humanistas. O padre estava ali para compartilhar o conhecimento e aprender com os moradores, com as tradições, com as histórias regadas pela miséria. Estava ali para aprender o que não estava em nenhum livro.
- Obrigado, meu filho.
O padre pegou o preá, disfarçando o asco que a caça lhe provocava, e entregou ao menino um saco de feijão, como agradecimento. Os olhos do menino sorriram e ele voltou para casa feliz, correndo, como costumam fazer os meninos.
Em casa, o padre olhou para o roedor e viu toda a sua sabedoria ameaçada. Por mais que se esforçasse, tudo o que via em suas mãos era aquele primo pouco distante dos ratos, e não podia conceber a idéia de comer algo tão asqueroso. Chamou os colegas e os quatro jesuítas se reuniram na cozinha, diante do inesperado presente.
- Joga fora.
- Devolve para a mãe.
Não dava mais tempo. O preá estava dentro da casa. A miséria e a doçura haviam invadido os livros e confundido os escritos. Os olhos do menino estavam cravados no coração de cada um deles.
- Amanhã, vamos comer o preá.
E comeram. Bem temperado, com farinha. O gosto nenhum deles sabe dizer como é. Um sabor insosso. Difícil de engolir.
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